Parte 1
Quinze anos, nascida e criada no castelo Brut, nome dado por meu pai, Brutos, o Rei e dono do castelo. Nada em minha vida era maravilha, posto que vivia só, com minha ama e sem muito contato com o povo. Sou a donzela mais formosa do reino de Logres, entretanto minha aparência é mais feliz que meu coração.
Entre tantos dias comuns, um outro dia amanheceu e anoiteceu sem nada de especial. Vesti-me com minha ama, tomei café, almocei, participei da vida do castelo. Nada que encantasse ou fizesse aquele dia em particular ser maravilhoso.
Naquela noite chegaram cavalgando dois homens, dois cavaleiros que por ali passavam e que meu pai convidou para pernoitarem no castelo. A partir daquele momento me senti realmente viva.
Os cavaleiros chegaram, foram desarmados e convidados para a janta. Participariam do banquete noturno de meu pai. Ao chegarem, sentaram perto de Brutos e comeram com a fome de cem leões. Parecia que não tinham se alimentado aquele dia todo. Mas mesmo assim responderam a todas as perguntas do rei. Ele queria saber de seus feitos, das batalhas, das missões, de tudo. Conforme contavam senti-me muito, muito feliz. Os dois homens, Galaaz e Boorz, tinham aventuras em terras que eu nunca ouvira falar. Eram verdadeiros cavaleiros, com coragem e honra.
Galaaz é tão formoso, sua voz tão firme e doce, tão bravo e maravilhoso que me fez sorrir atenta a ele durante todo o jantar. Nada me tiraria os olhos daquele homem, não queria que as estórias acabassem, nem que a noite acabasse para eu poder ficar ali, admirando-o e sorrindo, como nunca antes sorri.
Era amor. Sim, amei-o em cada palavra que ele pronunciou, e a cada palavra o sentimento ficou mais forte e nítido. Cada olhar que ele lançava em minha direção era um céu, mesmo que ele não estivesse me vendo, ele me olhava. Era como se não houvesse mais nada no salão, mal comi de tanta excitação com aquelas aventuras. Eu podia me ver num castelo meu e dele, um castelo lindo como o que eu vivia e vi-o em cada uma das batalhas, quando terminadas, voltando para os meus braços, para o meu amor.
Brutos terminou de comer, também os cavaleiros e os outros que lá estavam. Cem estórias estavam contadas e era tarde. Papai dispensou-os para que pudessem dormir e também se retirou. Retirei-me assim que os cavaleiros saíram, minha ama me chamava.
Cheguei em meus aposentos e agora choro. Choro como nunca havia chorado. Deitei-me em meu leito e entreguei-me a esta dor. Sei que o que eu sinto é impossível e irremediável, não poderei nunca ficar com ele. Meu pai tem grande admiração por cavaleiros, mas não permitiria casar-me com um deles. Estou perdida! Queria estar agora com Galaaz. Queria estar com ele só por estar com ele. Sinto até mesmo a falta dele, nunca o vi antes, nem sei se o verei depois, mas sinto a falta dele. Queria passar o resto da noite com aquelas aventuras, passear com ele nos jardins do castelo e viver este sentimento até que se esgote, se um dia se esgotar.
Ele é tão jovem, poderia ficar comigo e entender-me. Ele tem maravilha no olhar, na voz e em tudo que pude perceber dele. Ele deve me querer também, tenho mais ou menos a idade dele e ele deve ter me reparado, sou, afinal, a mais formosa do reino inteiro, sou a donzela filha de Brutos, o rei que lhe ofereceu um banquete mais que farto. Deve ter me reparado.
Oh, não queria estar chorando, mas eu o quero tanto! Quero o para mim, ao meu lado, em meus braços, quero esta nos braços dele, quero-o! Quero acordá-lo e dizer-lhe que fique comigo. Por que tenho de ser a donzela mais formosa e a mais impossível do reino? Por que não posso simplesmente dormir com ele? Por que este choro não cessa?
E vem a ama perguntar-me o motivo de tanto desespero.
- Dona, não é nada, deixeis-me só.
- Dizei-me o que tendes e donde vos vem este pesar.
Nada respondi. E ela novamente insistiu, ameaçou contar a meu pai. Não posso deixar que ele saiba, ninguém pode saber! Nem a ama! Tomariam-me por mal, pensariam em desgraça e desonra da família, apenas por meu sentimento. Não posso deixar que percebam. Não posso!
Se papai o souber vai me castigar, vai me prender e meu contato com o mundo vai se reduzir a ama e a este aposento minúscula em relação ao que eu quero conhecer e ver e sentir. Nada mais sentirei aqui dentro, só a dor do emprisionamento e da tristeza.
Ela não pode falar com ele sobre meu pranto!
- Ai, dona! Por Deus, não vades; antes vos direi o que me perguntastes, mas prometa-me não dizerdes nada a meu pai.
- Não tenhais medo – disse-me ela – porque, se é coisa de encobrir, eu vo-la encobrir muito bem.
- Eu amo tanto um dos cavaleiros andantes que aqui estão, se não o tiver à minha vontade, não chegarei a amanhã, antes me matarei com minhas mãos.
A dona pareceu espantada e agiu como mãe, disse-me que desistisse desta idéia porque, mais cedo ou mais tarde, meu pai acabaria por saber. E, quando soubesse, me mataria e mataria a todos que tivessem me ajudado. Ela parece temer por mim e por ela, e por ele, que também acabaria sendo perseguido e, por fim, morto.
Minha ama explodiu em mim, me fez prometer guardar meus sentimentos para mim e não mais dizer nada a respeito deste assunto. Desejei estar morta, quero-o, mas acabei por prometer. De nada adiantaria aborrecê-la, nem discutir com ela. Voltei aos meus travesseiros e tornei a chorar.
Prometi que ficaria sem falar dele e sem fazer nada, mas não tenho como esquecê-lo. Ele está em cada segundo, em cada pensamento, em cada uma das minhas lágrimas e dos meus desejos. Quero-o! Quero-o tanto!
E se fosse ao leito dele? Ele me receberia? Trataria-me como donzela que sou? Preciso ir! Preciso saber se ele quer! Preciso dele!
Tomo coragem e vou quando dormirem, quando a ama se retirar e for dormir ela também. Espero.
Foram mais quarenta e cinco longos minutos até que ela saísse. Estou com os trajes de dormir, mas vou assim mesmo ao encontro dele.
Preciso ficar. E a honra? A família? E meu pai? Desgraçarei seu nome sua honra se eu for. Preciso ter juízo e saber agir.
Um pensamento de culpa levou a outro e por fim sucumbi à vontade do Amor, indo contra os meus princípios de donzela.
Parte 2
Meu Deus! O que eu acabei de fazer! Estou em trajes de dormir nos aposentos de um completo estranho, um cavaleiro andante que nunca antes vi, nem nunca mais verei depois que ele partir. Ele ficará aqui uma noite, duas talvez e estou aqui, em desgraça e desonra, posta nesta bandeja e entregando-me eu mesma a ele.
Já estou aqui, e lá está aquele rosto formoso que tanto me fez sorrir hoje, lá está aquele cavaleiro maravilhoso. Já estou aqui, quero-o tanto!
Deitei-me ao lado dele, em seu leio, em seu cobertor. Foi a ação mais difícil que tomei na vida, tive que criar coragem, como ele teve de criar em suas aventuras. Eu aqui na cama dele, debaixo do cobertor em que ele dorme, pensando igualmente na vontade de estar com ele e na desgraça que seria se me descobrissem aqui. Meu coração bate mais forte, posso ouvi-lo bater e sentir este rubor que me faz ficar quente e suada.
Agora sei que não foi sensato vir aqui, não foi justo com ele e comigo, esta vida não é justa comigo. Tenho um pai que é Rei e que mal posso chamar de pai, pois não me ama, ama apenas aquilo que represento. Maldita seja esta honra, esta graça, esta pureza e negócios que represento. Não quer que eu seja feliz, não quer que eu ame, especialmente que eu ame este vilão que me tem aqui deitada, encantada e tão, tão sozinha.
Sempre vivi só. Vivi sozinha naqueles aposentos que dizem meus, naquela sala com ante-sala e leito. Minha ama é minha mãe, mesmo sem sê-la. Vivo aqui, presa. Quando casar, mais presa ainda viverei. Porque agora sei o que é Amor. Agora sinto a felicidade e o coração batendo em maravilha. Minha vida de nada vale sem este amor, sem este homem que me tome e me possua. Quero-o! Não posso tê-lo.
Meu Deus! Estes pensamentos, este lugar, tudo que penso, que sinto, que vejo, que lembro e as lágrimas que me voltam aos olhos. Casar-me-ia com um homem e seria meio viva e meio morta. Agora não posso viver sem este cavaleiro andante, sem o Galaaz. Preciso disfarçar este choro, preciso chorar mais baixo. Ele pode perceber-me e estará tudo acabado.
Que vida desgraçada, que lágrimas desgraçadas. Falo sozinha baixinho, com grande timidez, não quero que ninguém me veja nem me ouça e, ao mesmo tempo, quero muito que ele acorde e me tome.
- Ai, louca e néscia, que é isto que dizes? Tu não poderás fazer nada por este cavaleiro que não te seja vergonha e desonra. Tu não poderás fazer por ti mesma nada que não seja infeliz.
- Ai, infeliz, o que é isto que vejo? Ele é cavaleiro daqueles que a alegria está sempre em penitência, sempre pensando no bem maior para o mundo. De nada me vale minha carne mesquinha e trêmula, de nada me vale este corpo perto deste Galaaz. Perdoai-me Deus por fazer mal contra ele. Perdoai-me por fazer mal contra mim! Este cavaleiro é um dos verdadeiros cavaleiros da demanda do Santo Graal e em má hora foi tão formoso para mim.
Não consigo parar de chorar. Sei que ao encontrar-me ao lado dele, ele cumprirá minha vontade. Ele terá em mim prazer e... Ele está acordando!
Deus me ajude, pois ele está acordando! Ele me amará? Ele me notará? Ele me tomará? Seu rosto ao despertar, antes de me ver, foi maravilha. Antes de abrir os olhos, seu corpo encostou-se ao meu corpo desnudo e tocou com o tórax meus seios, quase se apertando contra eles.
Mas, neste instante, com os olhos abertos, foi-se embora a maravilha! Ele agora vê sabe que é a filha do Rei Brutos deitada em seu leito, ele sabe quem sou e por isso não me quer. Poderia eu ter outra face quando ele acordou? Será que ele esperava outra por isso a felicidade antes de abrir os olhos? Que será que ele pensa agora?
Dentro de meu espanto nem o vi se afastar. Ele está na beirada da cama, quase do lado de fora, desesperado para que eu saia. Olha-me como se eu estivesse a violá-lo, não me quer, visivelmente não me deseja.
- Ai, donzela! Quem vos mandou aqui certamente mau conselho vos deu. Rogo-vos, por cortesia e por tua honra, vades embora. Não entendo vosso louco pensar e sei que devo recear pelo que me acontecerá se eu fizer a vossa vontade.
Meu pensamento está agora confuso, misturado e terrivelmente perdido. Perdeu-se a maravilha e o encanto de antes. Ele não me quer, não me deseja, não vai me possuir e não quer que eu fique. Manda-me embora e sequer pensa em mim, a não ser por meu pai, de quem claramente tem medo. Sou assim tão indesejável que nem este vilão quer me ter? Sou assim tão desgraçada que nem mesmo meu pai, que deveria me amar não me ama e Galaaz, a quem eu quero não me quer?
Minha expressão de confusão e decepção o faz parecer ainda mais zangado comigo. Zangado e logo comigo! Zangado e sem me amar. Zangado e sem me querer. Zangado e ainda mais zangado sem me explicar.
- Ai, donzela! Desatinada estais; lembrai-vos de vossa situação e olhai a altura de vossa linhagem e de vosso pai e fazei com que não tomem desonra por vós.
Desonra? Estou farta desta palavra! Estou triste e quero este cavaleiro que se põe na minha frente e que nada sente por mim senão pena e surpresa. Nada me vale mais, nada! Recomponho-me por dentro e respondo, logo depois da última fala dele.
- Senhor, não há necessidade disso, pois que tão pouco me prezais, que de modo algum não quereis senão matar-me. E a morte está comigo logo, porque me matarei e vós tereis por isto maior pecado do que me tivésseis convosco, porque sois a razão da minha morte, e vós ma podereis impedir, se quiserdes.
Disse-lhe de matar-me sem pena, haveria de me desejar, ou me acolher, ou pelo menos me explicar. Haveria de me dizer que sentia muito, que preferia a minha vida. Haveria de dizer-me qualquer coisa, desde que tivesse zelo por mim.
Nada me diz de positivo agora. Diz-me que se eu me matar será sem propósito, que se sou mesmo a mais formosa que deus já criou que ele não mais me olhará e fala-me de virgindade e pureza de corp e espírito. Não sabeis? Como poderei ser pura se nunca poderei ser feliz sem vós? Como poderei ser honrada se estou destinada a viver sabendo que eu estive em vosso leito e vós não me quisestes? Nada vos digo, meu Galaaz, mas tudo sinto dentro de mim com muito pesar. Em minha pobre vida, em minha vasta linhagem e educação, ninguém me ensinou o verbo amar, ninguém me disse o que realmente era sofrer. Nem vós, que mo ensinais destas misérias, nem vós nada mo dizeis sobre elas. Meu ser chora por dentro com as palavras dele, meu ser morre aos poucos pela miséria deste amar.
- Como, cavaleiro, ainda quereis ser tão vilão que me não quereis outra coisa fazer?
- Não – disse-me ele.
- Se eu morrer neste leito, você também morrerá pelo meu temido pai, que não vos deixará sair com vida depois de matar-me ou de deixar-me matar-me.
- Não sei o que será, mas prefiro morrer sendo leal a escapar da morte cometendo um erro, o que eu não quero cometer.
Meus pensamentos borbulham. Nem assim me quereis, nem assim me desejais? Não deixo de pensar em matar-me, quero sair desta desgraça, não a desgraça desonrosa de me oferecer a um homem, a desgraça de amar e não ser amada, a desgraça de não poder controlar o que ele sente, não poder evitar que ele não me queira nem que ele me despreze, como faz agora. Vós me matais, cavaleiro, antes de ter uma espada em meu peito, tenho uma em meu coração e faria qualquer coisa para conseguir dar fim a esta tristeza.
Lá está a espada deste infeliz e amado Galaaz, a quem tanto estimo e detesto neste instante. Lá está aquela espada pesada que o ajudou em tantas aventuras e que agora me será tão boa. Tirei-a de seu recanto, saquei a bainha e agora a tenho em ambas as mãos que tentam equilibrar seu peso.
- Senhor cavaleiro, vedes aqui o engano que havia nos meus primeiros amores. Nunca soube do amor como sei agora. Nunca antes soube da miséria de amar como neste momento.
Ele agora que me viu com a espada. Tolo, achou que eu estava em meios de partir. Bom, assim estou, mas não apenas de seus aposentos. Não posso conviver com a rejeição, o amor, a dor e a consciência de ter estado aqui esta noite e vivido estes momentos com ele.
- Ai, boa donzela! Tem um pouco de paciência e não te mates assim, que farei todo teu prazer.
Se apenas ele soubesse dizer-me isso antes, se apenas ele não fosse tão tolo de achar-me boba e que depois de oferecer-me para ele, depois da rejeição terrível que ele me fez sentir e, principalmente, depois de tê-lo dito que me mataria, que eu apenas voltaria para o meu próprio leito e dormiria. Ai, Galaaz, por que não me dissestes isto antes? Apenas três minutos antes e terias um final diferente...
Meu coração se enche de cólera e atiro esta resposta:
- Senhor cavaleiro, tarde mo dissestes.
Nem bem terminei de dizer-lhe isto, a espada foi levada pela cólera e entrou em meu peito rápida, dolorida. Nem bem terminei de dizer-lhe e minha última lágrima desceu quente pelo rosto e pela veste.
Por Mariana Casals, para a disciplina Literatura Portuguesa I, prof Marcos Motta, na UERJ.
Julho de 2007.