A PIADA DO ILUMINADOR
No conto Estão Apenas Ensaiando, Bernardo Carvalho desconstrói ironicamente o conceito de verossimilhança, demonstrando que a imprevisibilidade e o mistério do mundo real ultrapassam os limites da mímese.
A ironia revela-se desde o início, e elementos cômicos parecem anunciar a tragédia subseqüente. Um deles é o estribilho “estão apenas ensaiando”, que repetidas vezes ao longo da narrativa remete à idéia de que os atores não estão apenas ensaiando e atribui uma significação misteriosa ao ensaio. Além disso, estão presentes a assistente, que ri incessantemente das graças do diretor, e o iluminador, cuja piada, que sofre constantes interrupções, se relaciona diretamente ao desenlace da narrativa. Por não ser revelada e apresentar interrupções que coincidem com as do ensaio, a piada é, aparentemente, a própria situação narrada.
Outros elementos irônicos presentes desde o início do conto desconstroem a noção de verossimilhança ao representar a mímese como autônoma e muito mais lógica e previsível que a realidade. Enquanto a cena sendo ensaiada está no centro dos acontecimentos da narrativa, é bem iluminada e os atores dialogam em “alto e bom som”, a realidade que se desenrola ao redor do palco parece se ocultar na penumbra. O teatro é escuro e os personagens presentes sempre se comunicam em sussurros, cochichos, ou mesmo gestos mudos. Esses elementos enfatizam a superioridade da mímese em relação ao real no que concerne à clareza e à lógica. O homem-silhueta que adentra o teatro, vindo do mundo exterior, que caracteriza um nível ainda mais obscuro de realidade por seu distanciamento, é uma personificação do mistério e da imprevisibilidade da vida real. A mímese ergue-se clara e autônoma acima de um real que é mudo, escuro e distante, e é iluminada pelo único personagem que parece retratar a verossimilhança como uma grande piada.
Tanto o diretor quanto o ator que faz o papel do lavrador, porém, mostram-se insatisfeitos perante a inverossimilhança da peça. O ator critica o texto, enquanto o diretor não se conforma com o “distanciamento” do ator que segundo ele, não seria apropriado na situação. A própria insatisfação do diretor é irônica, visto que esse exige que seja verossímil um diálogo com a morte. Essa necessidade de verossimilhança caracteriza o erro trágico dos personagens, e a própria realidade, personificada no homem misterioso, promove um desenlace absurdo e inacreditável para a narrativa. Em um instante ficcional, mímese e realidade encontram-se e confundem-se: a esposa do ator se transforma na mulher da peça de teatro, enquanto ator e “humilde lavrador” não mais se distinguem. Assim, o “distanciamento”, antes chamado de inverossímil pelo diretor, transforma-se em perfeita aproximação, em realidade. E pela primeira vez, “embora a entonação no palco tenha sido a mesma e devesse portanto, pela lógica, ser mais uma vez interrompida”, a realidade desvia-se da lógica e a interrupção não ocorre. A cena ficcional e a piada do iluminador prosseguem, fechando tragicamente, ao som de gargalhadas, a piada da verossimilhança.
A ironia, portanto permeia todos os níveis de realidade e mímese do conto Estão Apenas Ensaiando, ainda porque a realidade da obra está limitada pelas próprias fronteiras da ficção. Subentende-se então uma última camada de real, que seria o mundo do leitor. Essa construção de diversos níveis de realidade é justamente o que caracteriza a mímese como autônoma, pois se a realidade é tão fragmentada e dividida, em relação a quê poderia a ficção ser verossímil?
24 de nov. de 2008
Ensaio sobre o conto "Estão apenas Ensaiando" de Bernardo Carvalho
Postado por
Prosopopéia Perversa
às
11:08
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1 comentários:
Gostei de ler tudo e, por último, saborear a pergunta final. É isso aí.
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